quarta-feira, 20 de julho de 2011

Guardião do romanceiro potiguar


Yuno silva
repórter

Há exatos 40 anos ele descobriu as cores da cultura popular em São Gonçalo do Amarante, e desde então dedica-se à trabalhosa - e prazerosa - missão de revelar o que é que o folclore potiguar tem. Exemplo da máxima 'amor à primeira vista', Deífilo Gurgel encantou-se pelo bailado do Boi Calemba Pintadinho, do Mestre Pedro Guajiru (grupo que hoje está sob a batuta do Mestre Dedé Veríssimo), assim que avistou os brincantes em seus trajes cheios de fitas e espelhos, um encontro que mudou para sempre a vida deste guardião das tradições culturais.

"Era lindo ver aquilo (o Boi), me apaixonei na hora quando vi as roupas dos galantes (brincantes) reluzindo ao entardecer, e não larguei mais", disse o pesquisador, folclorista, escritor e poeta no alpendre de sua casa no Tirol. Do alto de seus 84 anos, o experiente Deífilo reconhece que começou tarde seu trabalho, mas o fato não o impediu de ser visto como autoridade quando o assunto gira em torno do folclore Norte-riograndense. "Depois daquele dia (em 1971), descobri o folclore e comecei a viajar pelo RN para registrar tudo o que estava a meu alcance", lembra.

E é justamente para tratar sobre seus registros ainda inéditos que a reportagem do VIVER procurou o folclorista, que está em plena atividade debruçado sobre a obra "Romanceiro Potiguar". Deífilo Gurgel trabalha há mais de 15 anos nesta publicação, fruto de uma pesquisa de dez anos realizada entre 1985 e 1995. "Essa demora toda é por causa do volume de material coletado durante a pesquisa. É trabalhoso e demorado mesmo, sem falar que vamos nos envolvendo com outras coisas", justifica. "Nem sei quantas horas de gravação cheguei a fazer, mas ouvi uns 300 romances e entrevistei mais de 100 pessoas", enumera.

Entusiasta de primeira grandeza, Gurgel se diz surpreso com a quantidade e qualidade das entrevistas e das descobertas: "Rodei todo o Estado para fazer esse levantamento do que ainda resta dos romances ibéricos imortalizados por Dona Militana, de São Gonçalo do Amarante. Não imaginava que encontraria tanta coisa!". Ele frisa que sua pesquisa vai de encontro à constatação do musicólogo e historiador Mário de Andrade, que circulou pela região no final da década de trinta catalogando as sonoridades nordestinas. "Mário de Andrade reclamou de não ter encontrado romances por aqui, mas temos que ver ele passou um mês e meio no RN e circulou pouco", disse o potiguar. Vale registrar que foi Andrade quem topou com o coquista Chico Antônio, alçando-o ao patamar onde se encontra até hoje.

Para publicar "Romanceiro Potiguar", Deífilo recebeu propostas do deputado Estadual Fernando Mineiro, que ofereceu, entre outras coisas, apoio logístico para digitação de todo o material; e do Senador João Faustino, com quem trabalhou na Secretaria Municipal de Educação de Natal na época que 'despertou' para o folclore - conversa esta mediada pelo advogado, escritor e presidente da Academia de Letras do RN Diógenes da Cunha Lima. "São apoios individuais e Diógenes perguntou se dava para entregar o livro até 15 de agosto, por isso estou trabalhando ligeiro para ver se dá tempo", adianta.

Descobertas

Os dez anos de pesquisa, apoiadas pela UFRN, renderam boas descobertas à Deífilo Gurgel, mas grande parte dos entrevistados já faleceram: "Sei que há gente nova que herdou esse conhecimento dos romances, mas só uma nova viagem para identificar essas pessoas", esclarece o pesquisador. O potiguar de Areia Branca contou que o "romance mais interessante que conheci foi 'Milagre do Trigo', apresentado por Dona Militana. Só ela sabia cantar e cheguei a chamar temporariamente de 'Jesus Cristo e o Lavrador', até que conheci o professor português JJ Dias Marques, da Universidade de Algarves em uma evento em Sergipe. Ele me disse que já tinha ouvido o romance, mas que só tinha conhecimento de versões em espanhol", disse.

Outra grande descoberta do ex-professor de Folclore Brasileiro do Departamento de Artes da UFRN foi o romance "Paulina e Don João", recitado por Dona Maria de Aleixo em Nísia Floresta. "Dona Maria mescla elementos italianos, uma raridade no RN pois geralmente os temas são ibéricos (Portugal e Espanha)", enfatiza.

Fabião das queimadas

A terceira descoberta destacada por Deífilo foi o romanceiro Pedro Ribeiro, em São Pedro do Potengi. De acordo com Gurgel, Seu Pedro conhecia cantigas antigas dos tempos áureos da pecuária potiguar. "Cantou vários fragmentos de romances criados por Fabião das Queimadas (1848-1928), mas fiquei impressionado mesmo foi com o 'Cavalo Moleque Fogoso'. Fabião era negro, ex-escravo e analfabeto, mas é o único compositor de romances", garante o folclorista. "Cascudo dizia que Fabião era um poeta medíocre, eu não acho", sentencia.

Segundo as pesquisas, no RN só há romances de origem ibérica, principalmente portugueses, que representa cerca de 80% de tudo o que se conhece. "Para melhor compreensão, estabeleci uma espécie de classificação dos romances: de Portugal temos o 'Romance Palaciano', que trata das intrigas da nobreza; os 'Romances Religiosos' e o 'Romance Plebeu'. Já entre os brasileiros temos o 'Romance da Pecuária', 'Romance do Cangaço' e os 'Romances Burlescos', cantados nos circos de antigamente", explica.

Na opinião do folclorista, são três as romanceiras de maior importância no RN: Dona Militana, que sabia mais de 30 romances; Dona Jovina Monteiro, conhecedora de outros 20; e Maria de Vito, da praia de Caraúbas. "Maria de Vito não sabia muitos romances, mas tinha algumas raridades para mostrar como a 'Xácara dos namorados', que tem pouquíssimas versões no Brasil", orgulha-se.

Além dessas raridades, Deífilo disse que o livro trará três romances inéditos: "São romances marítimos do Fandango que escutei de Seu Atanásio Salustino, pai de Dona Militana. São eles o 'Romance Capitão da Armada', Romance do Corsário da Índia', e a 'Xácara da Nau Catarineta'. São pérolas ainda não publicadas em nenhum outro lugar. Igual este livro no Brasil, com essa temática de romances, só outros dois: um de Jackson da Silva Lima (SE) e outro de Doralice Xavier (BA)", garante.

Biblioteca digitaliza romances

As entrevistas foram gravadas em fitas K7, e ficaram guardadas por muitos anos. Com receio de perder o material, Deífilo Gurgel entrou em contato com instituições e a Biblioteca Amadeu Amaral, do Rio de Janeiro, ligado ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular - Museu do Folclore, se interessou pela pesquisa. "Enviaram duas funcionárias que levaram as fitas para serem digitalizadas, depois me devolveram os áudios em CD e DVD", lembra.

A proposta inicial de Gurgel é lançar o livro, cuja abertura será assinada por Paulo de Tarso Correia de Melo (presidente do Conselho Estadual de Cultura) com CDs de áudio. "Não entendo muito de música, mas me emociono quando ouço romances como a 'Bela Infanta', apresentada por Dona Militana. Deve ter muita coisa para se ouvir por aí ainda, mas só com um projeto elaborado pelos órgãos culturais podemos registrar isso. Infelizmente os Governos não estão interessados em preservar essa memória", lamenta o autor, que vê o município de São Gonçalo do Amarante como o grande celeiro da cultura popular norte-riograndense. "SGA preserva todos os costumes antigos e a prefeitura de lá precisa atentar para isso e valorizar", aposta.

Passando por uma fase difícil, quando se recupera de uma cirurgia realizada em maio para extrair um tumor benigno na próstata, Deífilo diz que está entre os parentes que mais "esticaram a vida" e pretende, além de lançar "Romanceiro Potiguar", lançar mais dois ou três livros antes de "atravessar o lago da solidão" - diz citando soneto recém escrito. "Estive meio deprimido, mas já estou me recuperando", avisa.

Fonte: Tribuna do Norte